Igor Jesus da Silva, de 26 anos, foi aprovado neste ano em engenharia agrícola e ambiental na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Ele está preso desde 2018, por homicídio, e deve começar a frequentar as aulas presencialmente em breve.

Em 2022, além de Igor, mais de 70 mil candidatos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) fizeram a prova dentro de unidades prisionais — um aumento de mais de 30% em relação a 2021. Dependendo da nota, eles podem pedir, na Justiça, uma remição da pena (em geral, 100 dias a menos na cadeia) e o direito de se matricular na universidade.

Nesta reportagem, o g1 conta as histórias de quatro homens que, após serem condenados, passaram a estudar para buscar um bom resultado no exame — frequentaram as bibliotecas das penitenciárias e levaram os livros para dentro das celas.

Desde que foi preso, Igor já concluiu o ensino fundamental e o ensino médio na escola anexa à cadeia e, neste momento, após passar no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), aguarda que o juiz reduza sua pena (atualmente de 19 anos e 6 meses) e o libere para o regime semiaberto.

Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária da Bahia, ele poderá, em breve, frequentar as aulas da UFSB presencialmente: todos os dias, haverá um horário determinado pela Justiça para voltar à prisão.

“Eu nasci em um lugar onde a pobreza impera. Era para ter começado a trabalhar para comprar minhas coisas, mas acabei escolhendo o lado errado da vida”, diz ao g1, por chamada de vídeo, em uma sala da penitenciária de Itabuna (BA).

“Depois de ser condenado, meu foco passou a ser terminar meus estudos. Quero esquecer meu passado e dar orgulho para a minha mãe. Graças ao incentivo das professoras, eu não desisti.”

Uma das pedagogas da unidade prisional ouve a declaração de Igor ao g1 e fica emocionada. “A cada aluno que conquista a vaga na universidade, é como se eu tivesse conseguido também”, conta Ruth Praxedes. “O que nos motiva é saber que estamos levando a possibilidade de um futuro melhor. A vida não se resume a isso aqui”, afirma a professora.

Abaixo, entenda o contexto do Enem PPL e, em seguida, conheça a trajetória de presos que fizeram o exame e veja a discussão jurídica sobre o direito à remição da pena.

  • 🗓️ Desde quando existe o Enem PPL? A prova para pessoas privadas de liberdade foi criada em 2010, com a intenção de favorecer o processo de ressocialização dos presos. Ela tem o mesmo nível de dificuldade da versão regular e a mesma estrutura (180 questões e uma redação).
  • ✏️ Quem inscreve os alunos? Cada unidade prisional tem um responsável pedagógico, encarregado de inscrever os presos, escolher uma sala para o exame ser aplicado, separar toda a documentação necessária e possibilitar que participem dos processos seletivos para o ensino superior (como Sisu, Prouni e Fies).
  • 🎓Quem decide se o estudante pode se matricular? “Caso o participante do Enem PPL seja aprovado em algum processo seletivo com os resultados do exame, cabe à Justiça determinar se a pessoa poderá cursar a graduação. O Inep não interfere na seleção e no processo de matrícula”, afirma o órgão.
  • 📕 Pode ir às aulas? Vai depender também da decisão do juiz. “Se o regime prisional permitir esse deslocamento até a faculdade, como no regime semiaberto, é possível estudar, sim”, esclarece João Paulo de Campos Echeverria, advogado educacional. O preso, nesses casos, não precisa de acompanhamento durante o dia, mas tem de voltar à penitenciária em determinado horário.
  • ⚖️ Sempre há remição de pena? Não existe um consenso entre os juízes (entenda mais abaixo), mas especialistas ouvidos pelo g1 dizem que a tendência maior é de decidirem a favor do detento, seguindo a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
  • ✅ Quais as notas exigidas? Em geral, se o candidato tira mais de 450 pontos em cada prova do Enem (ciências da natureza, ciências humanas, matemática e linguagens) e mais de 500 na redação, tem 100 dias de desconto na pena. Há casos até de remição parcial (um detento que tenha alcançado as notas apenas em duas disciplinas, por exemplo, consegue 40 dias). “Premiar” o detento pelos estudos é algo previsto pela Lei de Execução Penal (veja detalhes mais abaixo).

Elias V.R.*, de 34 anos, foi condenado em 2014 a 16 anos e 4 meses de prisão em Presidente Prudente (SP), por homicídio.

Ao g1, contou que a educação foi fundamental para mudar sua trajetória.

Ele prestou o Enem PPL em 2017 (quando não alcançou a pontuação necessária em todas as disciplinas) e em 2018 (aí, sim, com todas as notas mínimas atingidas). O juiz considerou as duas edições da prova e, em 2020, reduziu 6 meses da pena de Elias e o liberou para o regime semiaberto. Em 2022, foi para o aberto.

“Graças a Deus, onde eu estava, tinha aula todo dia, e um professor de português me ajudou muito no preparo para a redação. A biblioteca [da penitenciária] tinha um vasto acervo de livros”, diz.

“[Fazer a prova] foi uma forma de me capacitar pensando no futuro, para quando eu saísse da prisão, e uma oportunidade para eu sentir que sou capaz.”

Neste ano, no segundo semestre, Elias pretende entrar na faculdade de gestão comercial.

“Estudar não é só pela remição da pena: é para se ressocializar. Quem critica não se coloca no lugar do outro”, conta. “Foram os estudos que me ajudaram a conseguir um emprego agora [em uma concessionária de veículos].”

O advogado de Elias, Renan Pereira, afirma que as iniciativas relacionadas à educação são fundamentais para os presos. “Mais cedo ou mais tarde, eles vão voltar ao convívio social. Se o Estado não disponibilizar meios de ressocialização, vai haver reincidência. A pessoa precisa conhecer outros meios de viver, fora do crime.”

Everton da Silva, de 34 anos, trancou a faculdade no primeiro semestre, em 2014, depois de ser preso por ter cometido um homicídio. Condenado a 28 anos de detenção, ele conta que decidiu “sair do conformismo e tentar buscar mais conhecimento” para voltar ao curso de direito.

“No dia a dia, trabalho de manhã e à tarde na escola [da penitenciária]. Nas horas livres, consigo levar o material didático para a cela onde moro”, diz Everton, que prestou o Enem PPL 2022.

“Sem romantizar o espaço onde estou vivendo, mas é importante ter essas oportunidades de capacitação.”

Como ele está em regime fechado, ainda não pedirá na Justiça o direito de ir à faculdade a partir das notas na prova. Por enquanto, até ir para o semiaberto, tentará apenas a remição da pena.

“Quero inspirar mais pessoas a estudarem. O crime é uma escolha, sim, mas dentro de um contexto de exclusão. A gente precisa de oportunidade”, afirma.

O que a lei diz?

A Lei de Execução Penal nº 7.210 (de 1984, alterada em 2011) dá ao condenado, em regime fechado ou semiaberto, o direito de reduzir um dia da pena a cada 12 horas de estudos na prisão. Ao concluir uma etapa (ensino fundamental, médio ou superior), há ainda um bônus de mais ⅓ nesse número de dias abatidos.

Para entender os passos abaixo, é preciso lembrar que o Enem, até 2017, desempenhava a função que hoje é do Encceja: quem não havia se formado no ensino médio na idade adequada podia fazer a prova e, dependendo do resultado, conseguir o certificado de conclusão escolar.

  • 2013: Quando o Enem ainda valia como certificação de ensino médio, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou um desconto da pena para quem conseguisse o diploma.
  • 2017: O Enem passou a servir apenas como forma de selecionar estudantes para o ensino superior. Surgiu um questionamento: o preso que já tinha concluído o ensino médio antes da detenção continuaria tendo direito à remição ao fazer a prova?
  • Fevereiro de 2023: A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou a remição a uma pessoa que já tinha terminado o ensino médio antes de ser presa. “O aprendizado para conclusão da educação básica ocorre apenas uma vez”, afirmou o órgão, na decisão. Ou seja: o fato de o candidato ter passado no Enem não significaria que ele estudou na penitenciária.
  • Março de 2023: Um mês depois, a mesma turma mudou totalmente de posicionamento e concedeu a remição de pena em um caso semelhante. Os critérios de nota foram os mesmos (100 dias de desconto para quem tira 450 pontos em cada prova e 500 na redação).

“Essa decisão do STJ é para aquele caso concreto. Não é obrigatório que os juízes sigam [a mesma conclusão], mas é difícil alguém tomar uma decisão diferente”, explica o defensor Leonardo Rosa, subcoordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da DPRJ.

O Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) não têm dados sobre quantos presos estão matriculados nas universidades brasileiras.

Essa é uma matéria do G1.com

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